Suspenção "dor ou prazer"

Pra que isso?

Em 1992, o paulistano André Meyer, DJ e um dos primeiros piercers do Brasil, desembarcou em Londres depois de 6 meses de Índia. Estava fraco e abatido: entre vacas sagradas e pratos de couve, havia perdido mais de 10 quilos. Assim mesmo, sentindo-se o próprio faquir, acordou na manhã seguinte e foi até o ateliê de uma amiga, onde tinha hora marcada para colocar um piercing na cabeça do pênis. Como não conhecia a técnica de aplicação da peça em órgãos genitais, curvou-se à tarefa de assistir ao processo no qual, sem anestesia sem nada, veria o próprio sexo sendo perfurado de lado a lado por um metal pontudo. Debilitado pelo exílio de privações entre hindus e muçulmanos, André não resistiu e desmaiou.
 
No início de dezembro passado, aos 30 anos de idade, André Meyer - cujo corpo comporta hoje oito piercings, inclusive um no saco escrotal, e mais de vinte sessões de tatuagem - desembarcou em Oklahoma, nos Estados Unidos. Estava forte e confiante: entre sucos e saladas, ganhou saúde. No dia seguinte à sua chegada, apresentou-se como ator voluntário a um grupo de "performances corporais" chamado TSD, sigla para Traumatic Stress Discipline. Segundo o site oficial criado por seus integrantes (www.obscurities.com/tsd), o TSD faz "deformações perigosas da forma humana". No "espetáculo" Cycle of Life - em cartaz um dia só, naquela mesma noite - isto significava fazer parte de um script que inclui deixar-se perfurar por ganchos de até 1 cm de espessura, prendê-los a correntes e, com a ajuda de uma estrutura metálica armada de roldanas, permitir que seja suspenso do chão pela pele como se fosse uma peça de açougue.
 
 















Gente que,
depois de se suspender,
toma cerveja no bar.
Ninguém quer saber muito do roteiro de Cycle of Life. Em todo o caso, é a encenação do ciclo da vida desde o nascimento até a morte, um mero pano de fundo para o "ritual" de perfurações e suspensões de corpos. O que importa mesmo é pendurar-se, e sobretudo suportar a dor durante a "suspensão humana", uma prática da seara do bodypiercing. Não é nada de ritual, nada de magia negra nem de religiões orientais. É gente normal, jovens de classe média com seus piercings e ta-tuagens, se pendurando pela pele, simplesmente. Gente que, depois de se suspender, toma cerveja no bar como se faz depois de uma pelada de fim de semana. "Quando você faz um bom sexo, sua consciência altera", explica-se André. "Esse é só um jeito de alterar a consciência e os sentimentos. Mas através da dor." Na noite do "espetáculo", oito pessoas foram suspensas. Outras oito aplicavam os ganchos, amarravam as correntes e faziam o trabalho. Apresentado num salão de festas de nome Diamond Ballroom, atraiu cerca de quinhentas pessoas, bem menos que no ano anterior - quando mil espectadores compareceram, metade deles para vomitar no banheiro. "Era gente da cidade", conta André. "Uma coisa assim de show de rock, caras fantasiados de Marilyn Mason batendo palmas espantadíssimos." 
 
Dispostos em quadrinhos na parede do Diamond Ballroom - "onde provavelmente acontecem os encontros daquelas associações de senhoras" -, Elvis Presley e uma meia dúzia de cowboys deviam se perguntar o que era aquilo: por quê? Para quê? Ao som de "um big beat meio mórbido", corpos subiam e desciam enganchados pelo peito como fez o Homem Chamado Cavalo, personagem do filme homônimo de Elliot Silverstein. Algumas pessoas preferiram a suspensão pelas costas sem o auxílio dos ganchos nas pernas, conhecida como Suicide.
Um homem chamado Allan Faulkner, considerado um "mestre da suspensão humana", pendurou-se pelos joelhos. A pele esticava-se com força (aliás, a elasticidade da pele é tamanha que, se fosse retirada do corpo e esticada por inteiro, daria para cobrir com folga uma cama de casal). Na modalidade Dupla, um sujeito se engarrancha no outro, suportando, além do próprio peso, o do parceiro.







 
ANZOL DE TUBARÃO
Depois de duas horas e meia de show, um apresentador, equipado com uma parafernália de voz de efeito futurista, anunciou que o trem fantasma tinha chegado no fim da linha. Acabou a festa e André Meyer não tinha conseguido lugar no palco para se supender. Mas não teve drama: Allan Faulkner - também sócio-fundador do TSD e dono de um verbete no Guiness Book como o único que se suspendeu por um gancho só - ia levá-lo para Dallas, onde, uma se-mana depois, fariam uma sessão privada. "O show não me assustou porque era aquilo que eu queria", lembra André. "Antes da minha própria suspensão, ainda assisti o vídeo da primeira vez do Allan. Faziam tudo com fio de nylon ao invés dos ganchos. Queimava pra burro."
O ganchos utilizados nas suspensões humanas, fabricados pelas mesmas indústrias que fazem os piercings convencionais, são manipulados em material cirúrgico. Aqueles que vão nas costas, em geral, têm 5 mm; os das pernas, 4. Mas tudo depende do tipo de suspensão - o recorde de Allan, por exemplo, o obrigou a uma peça de 1 cm de espessura. Dói, mas é justo esse o grande barato: controlar o sofrimento. "Foi uma das melhores experiências da minha vida, desse lance de conhecer os próprios limites e, assim, se auto-conhecer", analisa André Meyer

A química da dor
O que André diz não é novo: entre alguns hindus e umas poucas tribos de índios do oeste dos Estados Unidos, a prática da suspensão humana e o controle da dor constitui ritual de passagem onde é dado ao flagelado o direito de experimentar sensações desconhecidas para a maioria de nós. Como em qualquer desses rituais, acredita-se que a superação de obstáculos produza seres humanos melhores, mais sábios, mais aptos à vida e menos sujeitos aos seus imprevistos. "Não há recompensa sem sacrifício", dizem alguns filósofos. O diabo é que, a despeito disso tudo, o homem trava uma guerra de vida ou morte contra essa mesma dor: há evidências do uso de ervas e drogas para combatê-la ainda na pré-história. Pergaminhos de 4000 a.C. descrevem o álcool e o ópio como analgésicos eficazes. Hoje, só nos Estados Unidos, gastam-se mais de US$ 700 milhões com aspirinas e analgésicos.
As práticas de hindus, índios e xamãs - os sacerdotes do xamanismo - não teriam sobrevivido, porém, se não tivessem ao menos alguma base. Curiosamente, foi a própria evolução da medicina, na sua luta contra a dor, a responsável por descobertas capazes de jogar alguma luz sobre esse tipo de comportamento. Em primeiro lugar, provou-se que a dor é transmitida da área do ferimento para o cérebro através de uma série de circuitos que exageram ou minimizam a mensagem, influenciados por aspectos como as expe-riências passadas de sofrimento e os momentos psicológicos de cada um. Isso explicaria, em tese, porque algumas pessoas - e mesmo culturas e sociedades inteiras - parecem mais capazes de tolerar a dor do que outras. Na década de 70, cientistas escoceses descobriram que o corpo humano fabrica por si só uma substância analgésica mais forte que a morfina, a chamada endorfina. "Em estados diferenciados da mente", explica o diretor da Sociedade Brasileira de Estudo da Dor Flávio Ribeiro de Mello, "o ser humano é capaz de produzi-la e, numa espécie de transe, suportar muito mais o sofrimento físico do que outras pessoas normalmente suportariam".
 
VAI SABER
Tudo bem, o homem tem mecanismos objetivos e subjetivos para suportar a dor, e o poder da mente pode até ter mesmo algum poder - mas, afinal, por que gente como André Meyer, que não sofre de doença nenhuma, tem a necessidade de suportar tanta dor? A tentativa de superação de seus próprios limites, segundo ele, é uma forma de encontrar respostas às questões fundamentais da nossa existência, tipo "quem somos", "para onde iremos" etc. É polêmico: será que precisamos protagonizar um espetáculo de horror para nos conhecermos, e, por consequência, lidar melhor com o presente e o futuro? É claro que podemos testar nossos limites de outras formas. Fazemos isso quase que constantemente, às vezes indo a fundo num determinado assunto, outras vezes mergulhando de cabeça num relacionamento amoroso. Mas a verdade é que ninguém é dono da verdade, e a resposta para a pergunta tem de ser um enorme talvez.
Dizem que o homem, desde a sua pré-história, viveu em condições adversas, sobrevivendo às tormentas naturais, aos seus predadores, às tribos inimigas. Superar a dor imposta pela suspensão humana seria também uma forma de exercitar com civilidade esses aspectos supostamente inerentes à nossa espécie (e que fazem com que gente bem mais inconsequente pratique a roleta russa, ou vá parar num front de guerra embora não tenha sido convocada pelo exército de seu país). Quem sabe? - só assim, abrindo mão da certeza em favor do exercício inteligente da dúvida, é possível entender alguém como André Meyer, cuja cabeça já sonha com uma nova suspensão, dessa vez entre os hindus. "Eles iriam pirar: 'Pô, a gente faz isso em nome de Deus, o que é que esse maluco está fazendo aqui?'. Vou quebrar o conceito deles", imagina. "Vai ser como a vez que me encontrei com os saddhus: eu de dreadlock, e os caras me olhando estranho."


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